quarta-feira, outubro 06, 2010

O meu amigo Tino

Uma das coisas mais curiosas e confusas em Angola é o nome das pessoas. Para começar, é melhor não perguntar “como te chamas?”, mas “qual é o teu nome?”. Se a pergunta for a primeira o mais provável é que o inquirido não entenda. Outra questão é o nome da pessoa, sobretudo se é uma criança: pode ter até três ou quatro nomes pelos quais se dá. Pode apresentar-se pelo nome relativo ao dia da semana em que nasceu (Segunda, Caterça, Caquarta…) pelo nome que lhe deram no dia em que nasceu, pelo nome do Xará, que é uma pessoa de referência de quem se copia o nome. Depois, quando se fazem os documentos para o registo oficial, ainda pode haver outro nome que depois vai ser conhecido como o “nome da escola”. Para terem uma ideia, por vezes há grandes dificuldades até na elaboração de cédulas, documentos de casamento, etc. Mas há mais: por vezes são escolhidos nomes que têm tanto de original como de chocante, pelo menos para nós. Na minha recente visita à Missão do Gungo, quando me encontrava com algumas crianças na aldeia do Uquende, fui perguntando às crianças os seus nomes. Um deles disse: “Lixo”. “Lixo?”, inquiri eu sem querer acreditar. “Sim”, confirmou o miúdo. Fiquei chocado e até algo perturbado. Já tinha ouvido falar destes casos, mas nunca me tinha deparado com nenhum directamente. Movido pelo incómodo, comecei a imaginar outro nome poderia arranjar para aquele miúdo tão franzino e de voz tão fina. E porquê aquele nome? Antes do nascimento daquele menino, a mãe deu à luz três crianças que morreram todas à nascença ou pouco depois. Todos tinham recebido um nome “normal”. Então, quando ele nasceu, recebeu o nome de “Lixo”. Por um lado, porque havia o forte receio de que viesse a ter a mesma sorte dos irmãos (se ia morrer, já era lixo); por outro, vejo atitude quase um desafio à morte: a impotência por fazer alguma coisa que permita manter a vida parece levar a uma rendição perante a morte na esperança de que a mesma se deixe “enganar” e acabe por poupar aquela vida. E não é que às vezes até resulta, como foi o caso. Depois de percorrer mentalmente alguns nomes, disse-lhe: “então agora ficas Tino, de Diamantino; o teu nome agora é Diamantino e dizes aos teus amigos que és Tino”. A minha ideia mudar o nome de algo que se deita fora, que não interessa, por um que signifique algo valioso. Diamantino vem de diamante. A Missão permite-nos estas “acrobacias”. Numa terra em que as pessoas têm tantos nomes achei que não tinha mal mudar este, ainda para mais valendo-me da minha autoridade de padre missionário. Mas nesta história está em causa mais que o nome em si mesmo. A Missão é mesmo esta tarefa de dar às pessoas, tantas vezes oprimidas por situações tão desumanas, uma nova identidade que traga ao de cima sua dignidade de filhos de Deus. Nos dias que se seguiram, junto de adultos e crianças, ia dizendo que aquele menino agora se chama Tino; mas algumas dos miúdos insistiam em dizer “é Lixo” num ar de gozo e até de provocação de quem sabe que o primeiro nome não é assim lá muito simpático. Quando estive a última vez com o Tino ele já me soube dizer o seu novo nome. Espero que ele e os outros não o esqueçam. P. Vítor Mira

3 comentários:

José Sousa disse...

Optimo!
Este é mais um blog que me dá conhecimento do que se passa na terra que aprendi a amar. Optimos assuntos que aqui encontro, continuem! Já sou seguidor, seja meu tambem em:

www.angolaeseusfilhos.blogspot.com
www.congulolundo.blogspot.com

Um abração e felicidades.

Clara Neves disse...

Obrigada Pe. Vítor por partilhar esta história... O coração palpita à medida que a leitura avança. Uma mistura de sentimentos fazem com que os olhos se emocionem.

Estamos Juntos
Clara

Clara Neves disse...
Este comentário foi removido pelo autor.